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sábado, junho 27, 2009

O Vale das Sombras - Parte II


O SOLSTÍCIO

A claridade pousava sobre o peito branco de Mariana, tal como a mão quente e feliz de Luís Viriato.
Das frinchas indiscretas da persiana mal fechada entrava, ainda, uma luz crepescular e morna. Afinal era o dia mais longo do ano, o mais quente da última década e, sem dúvida, um dos mais aguardados pelos dois corpos, agora abandonados ao sono e estendidos na cama Luís XV do quarto dos pais de Luís Viriato, que merecidamente, todos os anos naquela altura respiravam os ares puros e tratavam dos fígados e do reumático nas Caldas do Gerês.
Essa indelével Primavera de 1981 ficou marcada pelos encontros clandestinos nos recantos da casa da avó Conceição Viriato, uma senhora que já não tinha conta às dioptrias e cujo aparelho auditivo para a surdez precoce estaria, seguramente, danificado ou mal regulado. Ou Dona Conceição preferiria a comodidade de se alhear dos suspiros abafados, de não olhar as faces esbaforidas dos netos e não se importar com o cheiro-do-amor-em-ebulição no ar.


As peles de Mariana e Luís combinavam-se na perfeição, assim como os risos, os gostos e as manias. O amor chegou em menos de uma música – aquela que ouviram incessantemente até à corrosão da fita da cassete.
Nos intervalos, Luís Viriato ia estudando a diversidade da Biosfera e as particularidades da Biologia Molecular e Celular, as consequências da Pesca e das ciências agrícolas e todo e qualquer bicho que penetrasse no seu campo visual despertava-lhe uma intuição quase obsessiva de estudo. Se não fosse a sua forma humana, dir-se-ia que Luís Viriato pertencia ao húmus de Vale das Sombras.
Ia no terceiro ano de Biologia, as viagens ao Porto para os exames eram eternas e no caminho de regresso ao Vale teimava a vontade premente de se aglutinar com todos os pedacinhos visíveis ou não da pele-de-porcelana-cheirosa. Sobejava também o calor, crescia o desejo e prosperava a beleza dos tons do céu sobre si e das árvores, das paisagens brilhantes, dos animaizinhos, dos pastos, das casas castelares com torres suiças, das casas abandonadas, das covas nas estradas e todas as curvas tortuosas da última tranche do rumo.
A paixão de Luís Viriato e Mariana Silveira surgiu do aperto dos sentidos, mas o amor é uma questão de alma. E as duas fundiram-se, algures no infinito, naquela tarde quente do solstício.

quarta-feira, março 11, 2009

O Vale das Sombras - Parte I















A TEMPESTADE
Luís Viriato esqueceu o que fazia no mundo na vida daqueles que o olhavam de sobrolho franzido e palavras vácuas na precisa tarde em que choveram libelinhas na Praça.

Não fosse a tremedura dos santinhos nos altares da entrada, no momento em que chegava à missa das três, e ninguém acudiria à sua própria tremedura, porque Luís Viriato era muito discreto e, quando se atrasava tomava o seu lugar quase sempre no último banco do último corredor. Um pé dentro e o outro fora, que Deus nosso senhor não se importava tanto com a matéria presente, ao contrário de senhora sua mãe, a quem prometera – a propósito de um dia de asma fatal de um Inverno qualquer – assistir à missa das três, ao terceiro dia de cada mês para lembrar o regresso de seu pai da saga das algas e das escamas e para lembrar os filhos, cada um dos três, nascidos a terceiros dias do calendário.
Luís Viriato abrira as goelas pela primeira vez a um terceiro dia de um Maio tão quente que a parteira não teve tarefa fácil, pois o suor que lhe escorria pela face obstruía mãe e filho e a tesoura de mestra que cortaria para sempre a ligação de Luís Viriato ao berço mais seguro onde alguma vez permanecera.
Completara já 27 anos, mas o tio e também padrinho de baptismo - Viriato das Dôres - ainda mantinha chocolates nos bolsos para o garoto, quando, na Praça se cruzava com ele.

Também Mariana Silveira partira no regional para Lisboa nessa exacta tarde, mas só muito mais tarde, os factos viriam a ser relembrados por Sara (numa noite de fogueiras quase beltanes de S. João), que viera reconstruir as suas raízes, à revelia da mãe e do destino. Como naquele filme, em que a protagonista viajava de dedo polegar apontado à estrada, à boleia de um pesado de mercadorias, com a roupa do dia e sanduíche de manteiga de amendoím... Só que, por estes lados, os procedimentos tinham sido bem mais convencionais. Havia transporte directo. A direcção definida. As estradas não eram longas de perder de vista. Ela nem gostava de manteiga de amendoím e tinha uma visita de estudo bem planeada às rotas castrejas para os lados de Vale das Sombras.


(Mas... Sara... chega muito depois...)

Pronto, voltemos a Luís Viriato, mudo, estendido e oscilante no chão da igreja.
A primeira libelinha caíu silenciosa no musgo do beiral do fontanário, mas o grupo que se seguiu foi bem mais turbulento e indecoroso.
E, uns segundos adiante, quando o padre Morais - carregando Luís Viriato em ombros e infligindo um pesado golpe na porta do sacro edifício - surgiu nas ruas com faces de cieiro, uma torrente de libélulas inundou o lugar. Não que alguém duvidasse da sua devida importância no controlo do excesso de mosquitada e afins e na sua capacidade em voar a mais de oitenta quilómetros por hora...Mas, uma tempestade com esta magnitude, logo sobre aquela vila esquecida no tempo?

O padre Morais e Luís Viriato assistiram, quase abraçados, ao acontecimento, sem que nem um nem outro tivessem escapado às copiosoas asas irrequietas.
Por momentos, Luís Viriato zumbiu susurros que incluíram um “adeus” e “ninfas do céu”, e há quem diga tê-lo ouvido murmurar “Mariana”...esperada em vão à porta da igreja nessa tarde. A partir desse dia, Luís Viriato nunca mais abriu a boca para falar, zumbir ou segredar um único «ai» sobre os seus sonhos e as suas esperanças. E só os poderes adivinhatórios do destino revelariam as palavras que Luís Viriato escondeu a vida toda.


Mariana Silveira só mais tarde viria a ouvir sobre o tumulto em Vale das Sombras.
Perfeitamente assimilada pela medula de Lisboa, não chegou a encontrar (embora, as más línguas dissessem que nunca o procurara) o seu tio Armindo, cujas ligações ao desembarque dos tanques no Carmo em Abril deram muito que falar. Nessa altura, era já permitido discernir sobre “Salazar”, “África” e ler Natália Correia, que, relembre-se, criou um fenómeno peculiar em Vilar de Mouros, entre conversas mais ou menos públicas, pop rock emergente nacional, nacos de haxixe e absinto, em 1971.


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

(Sophia de Mello Breyner)

quinta-feira, abril 24, 2008

O Povo da Floresta



sábado, fevereiro 02, 2008

O Baile















As calças impecavelmente estendidas na cama, e os sapatos transparentes de tanta graxa e meia de vidro gasta em cima no fim para o brilho.
Transformou-se em dois segundos. O Baile e noites e noites a planear as frases formosas que haveria de deitar no ouvido bem-educado da sua Francisca. E o convite...por fim.
Os sonhos, tantos, sobre as frases formosas que haveriam de deitar a sua Francisca no quarto com jarra de margaridas e prato de morangos.
Atirou-se escada abaixo, mas com cuidado, para não estragar a lapela e o bom ar.
Beijo maternal, conselho do senhor seu pai no bolso e força no pedal que o relógio fugira ao tempo dos humanos.
Ei-lo. Chegado de fresco.
O cãozinho continuava à porta, sereno, mas a rugir por dentro que nem urso. Ciúmes, sem dúvida incondicionais, apoderavam-se daquela criatura vasta e interminável dia a dia.


Atravessou o pátio lentamente, alçou a perna e na escada de pedra traiçoeira avançou sobre ele a lealdade canina em estado puro.
Valou-lhe o sentido de orientação e organizou-se nos buchos da entrada. Por um triz...salvo por uma mão providente e uma porta aberta.
Respirou. Entrou e desolou-se com a vergonha a descer-lhe pelos olhos. Maria Francisca fugira com o professor de álgebra. Bonito! Suspeitas? Havia-as. Desconfiou-lhe a mão pouco paternal na face da discípula no refeitório na semana do Natal e nas curvas da discípula mais tarde no carro. Que o professor dá-se ao respeito. Muito insistes em filosofar. E carícia violenta na face.
Bonito! E agora, os rapazes? Autêntico cromo. Alvo de caderneta para as próximas eternidades.
Bem lhe quisera parecer que eram indisposições a mais, até para uma mulher. De bradar aos céus e outras redondezas celestiais!
Todas iguais. Aquele cabrão tinha-a levado bem...a sua lolita.

Nem se apercebeu da solidariedade canina em estado puro quando deixou o portão.
Caminhou dias a fim e enterrou a sua primeira desilusão em absinto na taberna mais antiga da viela. Como os filósofos desgostosos de antigamente.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

A Sereia





Nessa manhã, Ramalho - o velho - não deixou o púcaro ao lume, não abriu a portinhola para arejar as nostalgias, nem vasculhou os armários de pão escuro para o caminho da volta.
O ar frio cortava e não se avistava sombra de nuvem ou gaivota de bico vago. O silêncio ocultara o mundo e o velho Ramalho as palavras.
Caminhava estreito no chão turvo, com pés lestos e desejo de beber a saliva do mar e ensereiar-se de uma vez só.

A primeira vez que a vira sentira-a escorregar nas pernas das calças arregaçadas. Escapou-se-lhe num instante, mas encantou-o para sempre.
Quem diria, velho Ramalho, babado por uma sereia - daquelas de verdade – das histórias dos meninos antes de darem rumo aos sonhos...

Pensou nos netos dos seus netos, que não conhecia, e nas histórias que haveriam de cristalizar...se soubessem ao menos... histórias de multidão aos gritos, ignorando os ouvidos-míopes e as mãos-de-ferro-derretido. Mas acreditava (ao contrário de outros, envidraçados pelo tempo) que tais proezas próprias da época tinham merecido os calos sentimentais da coragem.
Porra, outra vez as memórias imutáveis, outra vez o cheiro das brasas na escalfeta e as sopas de cavalo esgotado!
E os suores nocturnos nos lençóis da Maria Antónia, a criada dos fundos do casarão...E o ar efémero e profundamente azul da sua mãe. Azul do mar.

Mais uns instantes e perderia a praia dos olhos.
No princípio, a sensação não fora sequer mundana. Mas insistira e tomou-se a jeito de acariciar escama a escama como pele amansada. Tão apetecível...como uma porta sem trinco para quem vê o sol aos quadradinhos.
Gemia de sofreguidão pelos cabelos cobre e braços marfim. Sem saber, as cantorias que o envolviam transformavam-se em labirintos e pérolas...e brilho sem fim.

Depois das quimeras da juventude com Laurentina, ficou-se solteiro na carta. Que casamento só com as amarras do sargaço e dos fados dos pescadores-quase-marinheiros, mas sem o privilégio da contemplação das meninas no cais.
Sobravam-lhe filhos por aí...e nem por isso a fama se lhes difamava na praça ou lhes faltava cêntimo para a açorda do Natal. Que ao povo daquele lugar não interessava o braço dado na capela aos domingos. Pão na mesa e conversas paternais ao luar e nas feiras.
Era isso. E bastava.

Viajou muito. E muito só.
Decidiu voltar quando a terrinha parecia ter esquecido o país remanescente em curso e quando ele próprio já nem se lembrava da textura do míscaro a saber a regalia.
Nessa altura, não havia lugar a criar família. Os ideais, os seus grandes camaradas, as reuniões...porque o país precisava, porra!...a única causa pela qual valeriam as insónias...porque mais tarde ou mais cedo cuspiria nesses dissidentes, esses traidores gandulos, que não se incomodaram em limpar a boca antes das denúncias...E outros desamores que não deixaram saudades e muito espaço a esperanças.
E assim se fez na vida. Muito só.

A água arrefecia debaixo de si e Ramalho aquecia, aquecia e já nem via a ponta do farol.
Percorria a braçadas o último desejo conhecido da sua existência.
Ela esperava-o de braços abertos e escamas reluzentes.

Mais tarde, as memórias felizes deixaram de lhe aquecer os pés à noite. E, de madrugada, o frio vingava-se pelas tentativas falhadas de horas e horas ao engano, esperando, em vão, encontrar corpos deixados ao desmazelo das paixões.
Mantivera a bandeira poeirenta encostada à janela, bem alta e esticada, como quem pede para espreitar o outro lado do vidro.

Encontrou-a, assim, num dia de pés gelados.
Um pretexto mais-que-perfeito para se perder em devaneios não muitos sensatos para a idade.
Encontrou na sua voz modos de embarcação náufraga a pedir guarida e a anestesia dos anos baralhados que doem pela saudade do que ainda não se tem.

E o que diriam os jornais, merda?!
Que fulaninho tal desaparecera em alto mar na costa da terrinha...nada de homenagem embandeirada...A seu ver, a lápide não abrigava nem alma nem coisa nenhuma. Albergava, sim, as desculpas e os suspiros daqueles que procuram na morte só mais um sítio para expiar as broncas da vida. Um confessionário...pagão, claro que está! Quem rouba os santinhos e os cânticos daquele povo rouba também esse mistério que é a fé! Fé? Fé era acreditar que vindo da Avenida, o Datsun chegava inteirinho a casa, clandestino e vazio das bombas de letrinhas, com os camaradas lá dentro sãos e salvos. Essa haveria de ter sempre como certa, a sua fé no que se escreve e permanece. E nem sempre os camaradas e o país estariam a salvo... como ele.

Susteve a respiração e afunilou-se na corrente.
Não seria a primeira vez porque a maralha costumava mergulhar ao entardecer.
Mas seria certamente a última e não voltaria com as medalhas nas mãos e algas em forma de consagração.
Avistou-a no fundo, de braços abertos e cauda expectante.
Não pensou duas vezes.
E a espuma da maré engoliu o cascalho negro da praia e da noite.

quarta-feira, agosto 15, 2007

Dos Gestos Perdidos
















Há quanto tempo não te ponho a mão no ombro, como se baixinho te sossegasse da turbulência dos meus pensamentos.

Não te retive na paciência da minha calma que dura instantes - como tão bem sabes -e raramente te ofereço os louros das tuas palavras assertivas. E eu que pertenço a uma geração (diz-se) à qual tudo se prometeu e nada se deu...

Não suporto o tremeluzir dos teus olhos de mel, que é quando vais começar a chorar. E olha que mais depressa demoro um banho na praia das memórias do que te vejo de lágrima transparente a escorregar na cara de menina.

És tão forte que tenho medo. Vêem-te, por vezes, parede de igreja matriz de lamentações imbecis e que tudo sustenta (mas nem sempre deixas de arder por dentro, como tão bem sei).

Carinha da mamã...o que ouço...e sou tão tua que tenho medo.




segunda-feira, junho 25, 2007

Da Liberdade


















A porta de entrada calou-se com um estrondo e o que fora vila em dia de mercado de pleno Agosto transformara-se em ermo de Interior de neve tardia. O silêncio. O silêncio ensurdeceu-se-lhe nas mãos, nos olhos, nos cantos vazios e na tónica persistente do som do frigorífico.
Nunca o T1 lhe parecera tão simultaneamente claustrofóbico e espaçoso e, agora que a voz ecoava com indisciplina nas frases que tentava reconstituir, a razão perdera-se-lhe na garganta seca e o rosto tornava-se ainda mais transparente do que a claridade que lhe entrava pelas brechas da janela e da vida.
Encostou-se ao azulejo e fundiu-se na ordem neoplasticista da composição. Desejou travar o movimento da água da chuva nas ruas e incendiou as lágrimas que lhe percorriam os dedos e a descompunham naquele vestido cansado...escolhido por ele no Natal passado.
Mas, a situação, aos poucos, imaginara-se previsível. Sabia, desde os tempos das brincadeiras no terraço dos avós e das corridas até ao farol da praia grande, que a única concorrente à sua altura seria aquela liberdade de que se fala... crua e integral.
Era ele que lhe roubava de repente e de cor os seus gostos, as palavras indizíveis e a sua preferência pelo vinho branco brando do hotel de Paris...
Talvez o lembrasse para sempre no cadeirão do canto do jardim aos domingos. E talvez ele a retivesse descalça no areal com a dança entre os braços e os pés no Verão em que se casaram.
A voz adormecida dos desejos acordou-o e empurrou-o para a inevitável maçaneta da porta de saída e para aquele mundo escondido e integral de que se fala.