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segunda-feira, dezembro 17, 2007

A Sereia





Nessa manhã, Ramalho - o velho - não deixou o púcaro ao lume, não abriu a portinhola para arejar as nostalgias, nem vasculhou os armários de pão escuro para o caminho da volta.
O ar frio cortava e não se avistava sombra de nuvem ou gaivota de bico vago. O silêncio ocultara o mundo e o velho Ramalho as palavras.
Caminhava estreito no chão turvo, com pés lestos e desejo de beber a saliva do mar e ensereiar-se de uma vez só.

A primeira vez que a vira sentira-a escorregar nas pernas das calças arregaçadas. Escapou-se-lhe num instante, mas encantou-o para sempre.
Quem diria, velho Ramalho, babado por uma sereia - daquelas de verdade – das histórias dos meninos antes de darem rumo aos sonhos...

Pensou nos netos dos seus netos, que não conhecia, e nas histórias que haveriam de cristalizar...se soubessem ao menos... histórias de multidão aos gritos, ignorando os ouvidos-míopes e as mãos-de-ferro-derretido. Mas acreditava (ao contrário de outros, envidraçados pelo tempo) que tais proezas próprias da época tinham merecido os calos sentimentais da coragem.
Porra, outra vez as memórias imutáveis, outra vez o cheiro das brasas na escalfeta e as sopas de cavalo esgotado!
E os suores nocturnos nos lençóis da Maria Antónia, a criada dos fundos do casarão...E o ar efémero e profundamente azul da sua mãe. Azul do mar.

Mais uns instantes e perderia a praia dos olhos.
No princípio, a sensação não fora sequer mundana. Mas insistira e tomou-se a jeito de acariciar escama a escama como pele amansada. Tão apetecível...como uma porta sem trinco para quem vê o sol aos quadradinhos.
Gemia de sofreguidão pelos cabelos cobre e braços marfim. Sem saber, as cantorias que o envolviam transformavam-se em labirintos e pérolas...e brilho sem fim.

Depois das quimeras da juventude com Laurentina, ficou-se solteiro na carta. Que casamento só com as amarras do sargaço e dos fados dos pescadores-quase-marinheiros, mas sem o privilégio da contemplação das meninas no cais.
Sobravam-lhe filhos por aí...e nem por isso a fama se lhes difamava na praça ou lhes faltava cêntimo para a açorda do Natal. Que ao povo daquele lugar não interessava o braço dado na capela aos domingos. Pão na mesa e conversas paternais ao luar e nas feiras.
Era isso. E bastava.

Viajou muito. E muito só.
Decidiu voltar quando a terrinha parecia ter esquecido o país remanescente em curso e quando ele próprio já nem se lembrava da textura do míscaro a saber a regalia.
Nessa altura, não havia lugar a criar família. Os ideais, os seus grandes camaradas, as reuniões...porque o país precisava, porra!...a única causa pela qual valeriam as insónias...porque mais tarde ou mais cedo cuspiria nesses dissidentes, esses traidores gandulos, que não se incomodaram em limpar a boca antes das denúncias...E outros desamores que não deixaram saudades e muito espaço a esperanças.
E assim se fez na vida. Muito só.

A água arrefecia debaixo de si e Ramalho aquecia, aquecia e já nem via a ponta do farol.
Percorria a braçadas o último desejo conhecido da sua existência.
Ela esperava-o de braços abertos e escamas reluzentes.

Mais tarde, as memórias felizes deixaram de lhe aquecer os pés à noite. E, de madrugada, o frio vingava-se pelas tentativas falhadas de horas e horas ao engano, esperando, em vão, encontrar corpos deixados ao desmazelo das paixões.
Mantivera a bandeira poeirenta encostada à janela, bem alta e esticada, como quem pede para espreitar o outro lado do vidro.

Encontrou-a, assim, num dia de pés gelados.
Um pretexto mais-que-perfeito para se perder em devaneios não muitos sensatos para a idade.
Encontrou na sua voz modos de embarcação náufraga a pedir guarida e a anestesia dos anos baralhados que doem pela saudade do que ainda não se tem.

E o que diriam os jornais, merda?!
Que fulaninho tal desaparecera em alto mar na costa da terrinha...nada de homenagem embandeirada...A seu ver, a lápide não abrigava nem alma nem coisa nenhuma. Albergava, sim, as desculpas e os suspiros daqueles que procuram na morte só mais um sítio para expiar as broncas da vida. Um confessionário...pagão, claro que está! Quem rouba os santinhos e os cânticos daquele povo rouba também esse mistério que é a fé! Fé? Fé era acreditar que vindo da Avenida, o Datsun chegava inteirinho a casa, clandestino e vazio das bombas de letrinhas, com os camaradas lá dentro sãos e salvos. Essa haveria de ter sempre como certa, a sua fé no que se escreve e permanece. E nem sempre os camaradas e o país estariam a salvo... como ele.

Susteve a respiração e afunilou-se na corrente.
Não seria a primeira vez porque a maralha costumava mergulhar ao entardecer.
Mas seria certamente a última e não voltaria com as medalhas nas mãos e algas em forma de consagração.
Avistou-a no fundo, de braços abertos e cauda expectante.
Não pensou duas vezes.
E a espuma da maré engoliu o cascalho negro da praia e da noite.