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quarta-feira, abril 25, 2007

Abril


noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

onde se pode - num vocabulário reduzido e
obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial


Al Berto
Vestígios

terça-feira, abril 24, 2007

A Dama de Algodão


















A avó Benvinda pintava sempre um olho mais do que o outro, daquela sombra azul intenso, que ainda durava, mesmo após investidas de filhas e netas. E o baton passava por vezes para os dentes, quando se deveria manter intacto e bem comportado nos lábios. Eu dizia-lhe “vóvó, estás borratada” e ela discretamente tirava o lenço com as cornucópias da carteira e abria o espelho miniatura com a mulher art nouveau esculpida na frente. E ria-se…”que uma senhora que é senhora sabe estar em qualquer lugar”.
Mas estes percalços cosméticos só aconteceram nos últimos anos, quando a canseira das virtudes domésticas e dos Invernos dos ossos baralhavam já a cabeça e a vida da dama de algodão…doce.

Saí de casa, uma vez numa noite de Verão, amuada por causa de uma paixão e da rebeldia oficial da altura, directa às saias da avó. “Tem calma filhinha, que o teu pai vai perceber que já não se namora por olhares, nem se casa por respeito à família”. Imagino que lhe tivesse custado manter-se quieta e muda, à janela de um segundo andar da rua dos Clérigos, enquanto o meu avô Mário abria os braços no rés-do-chão, durante as horas de um romance que lhes assolapou os sentidos e os destinos. Acredito que, em pensamento, se atirou muitas vezes, sem se estatelar na calçada, porque para ela o amor era o ópio do povo e até nem era muito de ir às missas todos os dias (como a Dona Cristina e a Dona Gertrudes lá da rua do Paraíso).
Confessou-me, mais tarde, que nem sempre o mar fora de rosas...revelou-se até bem salgado, como aquele que a separou alguns meses do avô, que quase se estatelava por uma açoreana-extrovertida-demais, de seu nome Maria Mesquita.
Dizem que os óleos de baleia são alucinogénios. Deve ter sido isso, porque quando voltou levou ao altar a mulher da vida dele.

A minha avó Benvinda morreu numa manhã muito quente de Maio, ao lado da campa do meu avô Mário. Foi de repente. Dizem. Eu acredito, porque o rapto pelo amor é instantâneo. E eu penso que o meu avô já não aguentava adormecer sem a ter ao seu lado.
Deixou no saquinho que a Polícia entregou à família, a aliança, o relógio, a agenda com os números mais importantes em letra redonda que tão bem escrevia e o espelho miniatura partido com a mulher art nouveau esculpida na frente.
Porque, acima de tudo, uma senhora tem que saber estar. Sempre.

quinta-feira, abril 12, 2007

As Máscaras




Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen




E porque, mesmo num país à beira de um ataque de nervos, ainda vale a pena beber um copo contigo- agora que sou mulher - e ouvir as tuas histórias de homem sem máscaras. Porque os outros esquecem, mas eu não...