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quarta-feira, março 11, 2009

O Vale das Sombras - Parte I















A TEMPESTADE
Luís Viriato esqueceu o que fazia no mundo na vida daqueles que o olhavam de sobrolho franzido e palavras vácuas na precisa tarde em que choveram libelinhas na Praça.

Não fosse a tremedura dos santinhos nos altares da entrada, no momento em que chegava à missa das três, e ninguém acudiria à sua própria tremedura, porque Luís Viriato era muito discreto e, quando se atrasava tomava o seu lugar quase sempre no último banco do último corredor. Um pé dentro e o outro fora, que Deus nosso senhor não se importava tanto com a matéria presente, ao contrário de senhora sua mãe, a quem prometera – a propósito de um dia de asma fatal de um Inverno qualquer – assistir à missa das três, ao terceiro dia de cada mês para lembrar o regresso de seu pai da saga das algas e das escamas e para lembrar os filhos, cada um dos três, nascidos a terceiros dias do calendário.
Luís Viriato abrira as goelas pela primeira vez a um terceiro dia de um Maio tão quente que a parteira não teve tarefa fácil, pois o suor que lhe escorria pela face obstruía mãe e filho e a tesoura de mestra que cortaria para sempre a ligação de Luís Viriato ao berço mais seguro onde alguma vez permanecera.
Completara já 27 anos, mas o tio e também padrinho de baptismo - Viriato das Dôres - ainda mantinha chocolates nos bolsos para o garoto, quando, na Praça se cruzava com ele.

Também Mariana Silveira partira no regional para Lisboa nessa exacta tarde, mas só muito mais tarde, os factos viriam a ser relembrados por Sara (numa noite de fogueiras quase beltanes de S. João), que viera reconstruir as suas raízes, à revelia da mãe e do destino. Como naquele filme, em que a protagonista viajava de dedo polegar apontado à estrada, à boleia de um pesado de mercadorias, com a roupa do dia e sanduíche de manteiga de amendoím... Só que, por estes lados, os procedimentos tinham sido bem mais convencionais. Havia transporte directo. A direcção definida. As estradas não eram longas de perder de vista. Ela nem gostava de manteiga de amendoím e tinha uma visita de estudo bem planeada às rotas castrejas para os lados de Vale das Sombras.


(Mas... Sara... chega muito depois...)

Pronto, voltemos a Luís Viriato, mudo, estendido e oscilante no chão da igreja.
A primeira libelinha caíu silenciosa no musgo do beiral do fontanário, mas o grupo que se seguiu foi bem mais turbulento e indecoroso.
E, uns segundos adiante, quando o padre Morais - carregando Luís Viriato em ombros e infligindo um pesado golpe na porta do sacro edifício - surgiu nas ruas com faces de cieiro, uma torrente de libélulas inundou o lugar. Não que alguém duvidasse da sua devida importância no controlo do excesso de mosquitada e afins e na sua capacidade em voar a mais de oitenta quilómetros por hora...Mas, uma tempestade com esta magnitude, logo sobre aquela vila esquecida no tempo?

O padre Morais e Luís Viriato assistiram, quase abraçados, ao acontecimento, sem que nem um nem outro tivessem escapado às copiosoas asas irrequietas.
Por momentos, Luís Viriato zumbiu susurros que incluíram um “adeus” e “ninfas do céu”, e há quem diga tê-lo ouvido murmurar “Mariana”...esperada em vão à porta da igreja nessa tarde. A partir desse dia, Luís Viriato nunca mais abriu a boca para falar, zumbir ou segredar um único «ai» sobre os seus sonhos e as suas esperanças. E só os poderes adivinhatórios do destino revelariam as palavras que Luís Viriato escondeu a vida toda.


Mariana Silveira só mais tarde viria a ouvir sobre o tumulto em Vale das Sombras.
Perfeitamente assimilada pela medula de Lisboa, não chegou a encontrar (embora, as más línguas dissessem que nunca o procurara) o seu tio Armindo, cujas ligações ao desembarque dos tanques no Carmo em Abril deram muito que falar. Nessa altura, era já permitido discernir sobre “Salazar”, “África” e ler Natália Correia, que, relembre-se, criou um fenómeno peculiar em Vilar de Mouros, entre conversas mais ou menos públicas, pop rock emergente nacional, nacos de haxixe e absinto, em 1971.


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

(Sophia de Mello Breyner)